quinta-feira, 11 de junho de 2009

"Você deve olhar para o que está fora das atenções"

Entrevista publicada originalmente no blog Jornalismo de Revista, em 19 de abril. E também, no site da Academia Brasileira de Jornalismo Literário.


Anne Hull é repórter especial do jornal “The Washington Post”.

Na entrevista a seguir, concedida ao jornalista e professor dinamarquês Ole Soennichsen, ela diz que, embora repórteres devam fazer perguntas, é importante também ser silencioso e discreto: “Isso exige muita disciplina, pois a maioria dos repórteres quer controlar a situação fazendo perguntas e dirigindo a conversa”.

O que torna a reportagem narrativa diferente da reportagem do jornalismo convencional?

De certa forma, as habilidades são as mesmas. A diferença está, na verdade, na escrita. Não importa o tipo de matéria que se procure fazer. Alguns procedimentos — observação, ouvido para o diálogo, um estado de alerta para sentir as coisas, fazer as perguntas certas — deveriam ser universais. Há algumas diferenças, porém.

Fazer reportagens narrativas envolve muito mais silêncio da parte do repórter. Não dá para ficar interrompendo o fluxo dos acontecimentos com perguntas. Você deve assistir ao desenrolar da ação, sem intervir. Você deve estar dentro e, ao mesmo tempo, fora.

Você disse uma vez que uma das coisas mais subestimadas ao se fazer reportagem é a observação - a arte de observar. Por quê?

Você precisa esculpir seu trabalho e não ser percebido. Nosso impulso natural é sempre fazer perguntas, mas isso às vezes é errado: isso o torna o centro das atenções, em lugar do seu personagem. Na quietude vem a humildade. Isso honra a pessoa que você está tentando observar.

As perguntas também são uma forma de controle. É uma maneira de ser o contra-regra. É claro que jornalistas devem fazer perguntas. Observar, no entanto, significa segurar suas curiosidades e deixar o assunto simplesmente viver. Silêncio e liberdade são essenciais.

Assim como o melhor repórter fotográfico, você deve olhar para o que está fora das atenções. Quando isso acontece, você enxerga, ouve e sente o cheiro de elementos que pergunta alguma poderia conseguir.

Como aprendemos a ser “uma mosca na parede” e não uma parte explícita da matéria?
Identificar suas fraquezas ajuda muito. Se descrever roupas não é seu ponto forte, escreva no seu bloco de notas “roupas”. Isso o lembrará de anotar o que alguém está vestindo.

Você pode lembrar a si mesmo de prestar atenção em tudo quanto é tipo de coisa. Quase sempre é difícil não expor sua opinião, ou não reformular a ação. Se você está num ponto de ônibus com seu personagem e o ônibus chega, mas o personagem não se levanta para pegá-lo, é difícil não dizer “Ei, este não é o seu ônibus?”. Só que você não pode. Você precisa ver o seu personagem perder o ônibus.

Por favor, vamos falar mais sobre observar — estar simplesmente quieto, assistindo a algo. Como você desenvolve essa habilidade e como explicar às pessoas que você as está acompanhando? Quanto tempo leva para conquistar uma aproximação suficiente para que elas aceitem isso?

Não existe técnica para você ser silencioso. Isso exige é disciplina, pois a maioria dos repórteres quer controlar a situação fazendo perguntas e dirigindo a conversa. Eles em geral têm pouco tempo para cumprir suas pautas. Mas algumas matérias exigem paciência e observação.

Veja o trabalho do repórter fotográfico. Ele se torna invisível, movimentando-se pelo ambiente, em volta de seu assunto, subindo, descendo, afastando-se. Um repórter pode fazer o mesmo. Assistir ao desenrolar de toda a ação. Lembre-se de ficar em silêncio. Seja paciente. Vá ficando por lá.

Para explicar isso, apenas diga no começo do processo da reportagem que, como repórter, você vai fazer um monte de perguntas. Você vai entrevistar várias pessoas, mas haverá momentos em que você vai apenas querer observar e entender.

De início, as pessoas estão inclinadas a agir performaticamente, ou elas ficam tão preocupadas que apenas ficam mais caladas. Mas logo que se sentem mais confortáveis, tendem a relaxar e voltam a se comportar normalmente.

Algumas pessoas agem naturalmente e logo já falam de seu mundo, mesmo com a presença de um espectador. Outras não se sentem tão confortáveis e exigem mais adaptação à presença do repórter.

Suas reportagens são feitas com pessoas comuns e não com fontes oficiais. O que isso representa? Você age de maneira diferente?

Pessoas comuns são geralmente as mais sinceras, mas também as mais vulneráveis. Como repórteres, nós temos a responsabilidade de não deixá-las esquecer que estamos observando, escutando e tomando notas.

Eles não podem confundir essa companhia com uma conversa de amigos. Essas relações podem ser calorosas e leves, mas estamos lá por uma razão, geralmente: para conseguirmos fazer uma matéria e fazê-la corretamente. Eu diria que essa é a maior diferença entre entrevistar pessoas comuns e as fontes oficiais.


Soube que você quase nunca usa um gravador. Por quê?

Transcrever gravações consome muito tempo. Prefiro fazer anotações, a não ser que eu esteja numa coletiva e preciso saber cada uma das palavras. Eu também uso o gravador quando a entrevista é sobre algo extremamente técnico ou não familiar para mim, para que eu possa anotar tudo e mais tarde escutar o gravador para compreender melhor.

Como você se lembra dos detalhes e das cenas longas?
Eu anoto tudo. Tudo. Diálogos, a atmosfera, as horas, o clima etc. Tudo.

Você anota tudo mesmo ou faz uma seleção quando já está em campo?

Anoto a maioria das coisas, incluindo impressões ou como algo me toca. Naquele momento, coisas do tipo “aqui eu ri” ou “isso me fez chorar”. Talvez seja apenas uma reação nervosa do meu próprio íntimo. Mas é algo que eu faço.

Como você evita que a relação com as fontes se torne muito pessoal, já que você quer que elas se aproximem de você? Que tipo de acordo se deve fazer com as fontes para evitar problemas éticos? Em uma cena crítica, quanto tempo um repórter deve esperar para começar a ajudar?

Nenhum jornalista deveria, em função de uma matéria, ficar esperando e apenas assistindo a um perigo ou um sofrimento aumentarem e espalharem-se. Ao mesmo tempo, estamos ali para documentar a realidade. O que faz uma correspondente na África, quando anda num campo de refugiados famintos, com as mãos estendidas em sua direção? O que você faz com sua garrafa de água no Sudão, ao ficar rodeado por pessoas famintas e sedentas, a centímetros de você?

Estas são perguntas difíceis, mas os cenários são extremamente reais. Eu escrevi sobre uma família no Kentucky que estava com uma filha com febre alta. Eles não tinham carro para levá-la ao médico. Meu carro alugado estava estacionado perto dali.

Mas não ofereci para levá-los rapidamente. Precisava ver como eles resolveriam aquele dilema, pois transporte e apoio médico fazem parte de uma longa história da pobreza. Mas quero ser clara: se a garota se encontrasse em sérios riscos, eu a teria levado ao hospital, sem dúvida alguma. Por sorte, o pai descobriu uma solução antes de chegarmos às providências mais severas.

Qual é a sua opinião sobre empregar diálogos que você não tenha ouvido pessoalmente?

Parafrasear geralmente é a melhor opção, e depois esclarecer de onde veio a informação. Isso pode ser resolvido ao dizer “lembrado vagamente” ou “o modo em que foi mais ou menos lembrado”. O diálogo direto é sempre o ideal, mas se você está reconstruindo, o uso das sentenças sugere que você ouviu cada uma das palavras e está transmitindo-as exatamente ao leitor. Se você usa citações, as palavras contidas devem ser exatas. Você tem certeza que elas são?


* Entrevista concedida a Ole Soennichsen, jornalista e professor de Jornalismo Literário/Jornalismo Narrativo na Dinamarca. Versão reduzida, editada e preparada por Edvaldo Pereira Lima. Tradução de Fred Linardi.